Seu estilo de vida já foi decidido
Traduzido do original "Your Lifestyle Has Already Been Designed" de David Cain. Todos os comentários de rodapé são de minha autoria.
Bem, estou eu de volta ao mundo do trabalho novamente. Encontrei um emprego de autônomo na indústria de engenharia que paga bem, e minha vida parece que está voltando ao normal após nove meses de viagens.
Como eu fiquei vivendo um estilo de vida bem diferente enquanto estava fora, esta súbita transição para a existência no horário comercial expôs algo que eu não tinha visto até então.
Desde o momento que me ofereceram o emprego, claramente estive sendo mais descuidado com meu dinheiro. Não gastando estupidamente, mas apenas mais rápido pra tirá-lo da carteira. Um pequeno exemplo disso é que estou comprando cafés caros de novo, mesmo que não estejam perto de serem tão bons quanto os maravilhosos flat whites da Nova Zelândia, e não tenho como saborear a experiência de bebê-los num pátio ensolarado. Quando eu estava fora, essas compras eram menos descontroladas e eu gostava mais delas.
Não estou falando de compras grandes e extravagantes. Estou falando de compras pequenas e casuais, que não adicionam muita coisa na minha vida. E só vou receber meu salário daqui a duas semanas.
Em retrospecto, acho que sempre fiz isso quando estive bem-empregado - gastando alegremente durante a madrugada[1]. Tendo passado nove meses vivendo um estilo de vida mochileiro sem salário, não consigo deixar de pensar em estar mais ciente desse fenômeno enquanto acontece.
Suponho que eu pense nisso porque sinto que ganhei um certo status, agora que sou um profissional bem pago, o que parece me dar direito a um nível de prodigalidade. Há um sentimento curioso de poder que se obtém quando você deixa pra lá uns pares de vinte dólares sem nenhum tipo de pensamento crítico. É bom exercer esse poder do dólar quando você sabe que vai "crescer de volta" logo logo.
O que estou fazendo aqui não é nem um pouco incomum. Todo mundo parece estar fazendo isso. Aliás, eu acho que só voltei para a mentalidade consumista normal após ter passado um tempo longe dela.
Uma das mais surpreendentes descobertas que fiz durante minha viagem é que eu gastei muito menos por mês viajando para países estrangeiros (incluindo países mais caros que Canadá) do que trabalhando regularmente perto de casa. Eu tinha muito mais tempo livre, visitei alguns dos lugares mais bonito do mundo, conheci gente nova a torto e direito, eu era calmo e tranquilo e tive momentos inesquecíveis, e ainda assim tudo isso me custou menos do que minha vida humilde de trabalhador numa das cidades menos caras do Canadá.
Parece que meu dinheiro valia muito mais enquanto eu estava viajando. Por quê?
Uma cultura de desnecessidades
Aqui no Ocidente, um estilo de vida de gastos desnecessários é deliberadamente cultivada e nutrida no público por grandes empresas. Companhias de todos os tipos de indústrias têm uma grande participação na inclinação pública de sermos impulsivos com o dinheiro. Elas procuram encorajar o hábito de gastarmos dinheiro casualmente em coisas não-essenciais toda vez que puderem.
No documentário A Corporação, uma psicóloga de marketing discutiu um dos métodos para aumentar vendas. O pessoal dela fez um estudo em como a importunação infantil tem efeito na probabilidade de fazer os pais comprarem brinquedos para os filhos. Descobriram que cerca de 20% a 40% das compras de brinquedos não teria ocorrido se a criança não tivesse importunado os pais. Uma a cada quatro visitas a parques de diversões não teria ocorrido. Usaram esses estudos para anunciar diretamente os produtos para as crianças, encorajando-as a pedir insistentemente pros pais para comprar.
Essa campanha de marketing sozinha representa muitos milhões de dólares que foram gastos por conta da demanda que foi completamente fabricada.
Você pode manipular consumidores em querer, e portanto comprar, seus produtos. É um jogo.
Lucy Hughes, co-criadora de The Nag Factor.
Este é apenas um pequeno exemplo de algo que está rolando há muito tempo. Grandes companhias não ganharam seus milhões promovendo honestamente a virtude de seus produtos, elas fizeram fortuna criando uma cultura de centenas de milhões de pessoas que compram bem mais do que precisam e tentam dissipar insatisfação com dinheiro.
Compramos coisas para nos animarmos, para mantermos as aparências, para preenchermos nossa visão de criança sobre como ser adulto é, para anunciarmos nosso status para o mundo, e por várias outras razões psicológicas que têm pouquíssimo a ver com quão útil o produto realmente é. Quanta coisa está no seu porão ou garagem que você não usou no ano passado?
A verdadeira razão para a semana de quarenta horas
A ferramenta derradeira para corporações sustentarem uma cultura dessas é desenvolver as 40-horas semanais como o estilo de vida normal. Sob essas condições de trabalho pessoas precisam construir uma vida à noite e nos fins de semana. Esse arranjo nos faz naturalmente mais inclinados a gastar imensamente em entreternimento e conveniências porque nosso tempo livre é escasso demais.
Só voltei a trabalhar por alguns dias mas já estou notando que as atividades mais saudáveis já estão indo embora da minha vida: caminhada, exercícios, leituras, meditação e escrita extra.
A coisa mais evidente entre todas essas atividades é que custam pouco ou nenhum dinheiro, mas precisam de tempo.
De repente eu tenho bem mais dinheiro e bem menos tempo, o que significa que tenho mais em comum com o típico trabalhador dos Estados Unidos do que eu tinha meses atrás. Enquanto eu estava fora eu não teria pensado duas vezes em passar o dia vagando em um parque nacional ou lendo meu livro na praia por algumas horas. Agora esse tipo de coisa parece estar fora de cogitação. Fazer qualquer uma delas levaria um de meus preciosos dias de fim de semana!
A última coisa que quero fazer quando chego em casa é exercício. Também é a última coisa que quero fazer após o jantar ou antes da cama ou assim que acordo, e isso é realmente todo o tempo que tenho durante a semana.
Isso parece um problema com uma resposta simples: trabalhar menos pra eu ter mais tempo livre. Já demonstrei a mim mesmo que posso viver uma vida gratificante com menos do que ganho atualmente. Infelizmente, isso é praticamente impossível no meu mercado de trabalho, e ainda mais em outros. Trabalha-se 40 horas semanais ou trabalha-se zero. Meus clientes e contratantes estão todos firmemente enraízados na cultura padrão de trabalho, então não é prático pra eles não me ligarem após 13h, mesmo que eu pudesse convencer o meu empregador do contrário.
O dia de trabalho de oito horas foi desenvolvido durante a revolução industrial na Inglaterra [2] no século XIX, como um descanso para trabalhadores de fábrica que estavam sendo explorados com 14 ou 16 horas diárias.
Enquanto tecnologia e métodos avançaram, trabalhadores em todas as indústrias se tornaram capazes de produzir muito mais valor em uma quantidade menor de tempo. Você esperaria que isso levaria a horas de trabalhos menores[3].
Mas as oito horas diárias de trabalho são lucrativas demais para as grandes empresas, não por causa da quantidade de trabalho que as pessoas fazem em oito horas (o trabalhador médio de escritório leva menos de três horas pra fazer seu trabalho nas oito horas) mas porque criam indivíduos que se satisfazem com compras. Manter a escassez de tempo livre significa que as pessoas pagam um bocado a mais por conveniência, gratificação, e qualquer outro alívio que podem comprar. As mantém assistindo televisão e comerciais. Também as mantém sem ambição fora do trabalho.
Fomos levados a uma cultura que foi engenhada pra nos deixar cansados, famintos por indulgência, propensos a pagar caro por conveniência e entreternimento, e mais importante, vagamente instatisfeitos com nossas vidas para que continuemos querer coisas que não temos. Compramos demais porque sempre parece que algo está faltando.
Economias ocidentais, em particular a dos Estados Unidos, foram construídas de uma maneira bem calculada em gratificação, vício e gastos desnecessários. Gastamos para nos animarmos, nos recompensarmos, celebrarmos, consertarmos problemas, aumentar nosso status e para aliviarmos o tédio.
Consegue imaginar o que aconteceria se toda a América[4] parasse de comprar coisas tão descessárias que nada nos acrescenta em nossas vidas?
A economia se colapsaria e nunca mais se recuperaria![5]
Todos os problemas bem conhecidos da América, incluindo obesidade[6], depressão, poluição e corrupção são o que custa para criar e sustentar uma economia trilhonária. Para a economia ser "saudável", América precisa permancer "doente". Pessoas saudáveis e felizes não sentem que precisam mais do que já têm, e isso significa que não precisam comprar um monte de bugigangas, não precisam ser entretidas o tempo todo, e não assistem a um monte de comerciais.
A cultura do trabalho de oito horas é a ferramenta mais poderosa das empresas para manter as pessoas no mesmo estado de insatisfação cuja resposta é comprar alguma coisa.
Talvez você tenha ouvido falar da Lei de Parkinson. É frequentemente usada em referência ao uso do tempo: quanto mais tempo te dão pra fazer algo, mais tempo você vai levar pra fazê-lo.[7]É incrível o quanto pode ser feito em vinte minutos se somente vinte minutos estão disponíveis. Mas se houver a tarde inteira, então a tarefa vai levar bem mais tempo.
Maioria de nós trata dinheiro desse jeito. Quanto mais ganhamos, mais gastamos. Não é que de repente precisamos comprar mais só por que ganhamos mais, mas sim como podemos gastar mais, acabamos gastando. Na verdade é bem difícil evitar o aumento de nosso custo de vida (ou pelo menos a taxa de aumento de gastos) toda vez que obtemos um aumento.
Não acho que seja necessário fugir do sistema e vivermos na floresta, fingindo ser surdo-mudo[8], tal qual Holden Caulfield fantasiava. Mas nos faria bem entender o que as grandes empresas realmente querem que sejamos. Elas estão trabalhando há décadas para criar milhões de consumidores ideais, e elas conseguiram. A menos que você seja uma anomalia, seu estilo de vida já foi decidido.
O consumidor perfeito é insatisfeito, porém esperançoso, desinteressado em desenvolvimento pessoal sério[9], altamente acostumado a assistir televisão, trabalhando em horário integral, ganhando um salário justo, se satisfazendo durante as horas livres, e de alguma maneira se virando.
Você se identificou?
Há duas semanas eu teria dito claro que não, não sou eu, mas se todas as semanas forem que nem esta que passou, então só me resta o pensamento ilusório.