Esta tradução tem por base o texto crítico estabelecido por Wolfgang Bonsiepen e Reinhard Heede, adotado na edição de Félix Meiner, 1988. Tivemos constantemente em vista outras traduções (francesa, italiana, inglesa e espanhola). Procuramos ser fiel ao original, usando verbos substantivados em lugar de substantivos, quando Hegel o faz: das Denken, das Aufheben, que traduzimos por: o pensar, o suprassumir. Tentamos conservar a mesma palavra portuguesa para cada termo hegeliano típico: onde o leitor encontrar "visar" sabe que em alemão estará meinen; entfremden, verschwinden, corresponderão sempre a alienar, desvanecer etc. Recorremos a maiúsculas por motivo de clareza: como para a distinção, para Hegel tão relevante, entre Coisa (Sache) e coisa (Ding). Levam também maiúsculas o Eu, o Si, o Outro, o Em-si e o Para-si. Utilizamos aspas simples para "visar", pois não achamos termo correspondente ao <em>meinen</em> hegeliano, nem mesmo esse, em seu uso habitual. Quando uma palavra alemã é vertida por várias em português usamos hífens: ex: inhaltlos = carente-de-conteúdo. No fim deste volume há um pequeno glossário, com algumas opções que tomamos na tradução de termos hegelianos. Traduzir é uma tarefa imperfeita por sua própria natureza. E, pelo que vimos nas outras traduções, o texto da Fenomenologia é particularmente insidioso e leva a deslizes seus mais competentes tradutores. Qualquer correção nos será particularmente bem-vinda. Para facilitar o uso didático do livro, adotamos a numeração dos parágrafos utilizada por Miller, e ainda colocamos no início de cada parágrafo suas primeiras palavras em alemão. Talvez os leitores sintam falta de notas explicativas, mas o que diz Bourgeois dos escritos filosóficos - que só se entendem quando relidos - é especialmente verdadeiro para a Fenomenologia do Espírito. Em algum lugar o próprio texto esclarece o que dissera antes, pois sua estrutura é em espiral, cada questão é retomada num nível superior, recapitulada e introduzida em nova perspectiva. A própria correnteza dialética faz o pensamento avançar, sem que necessite apoiar os remos nas margens (ou em notas de margem ou de rodapé). Hegel fez para sua Fenomenologia um Prefácio e uma Introdução; isso poderia nos dispensar de outros Antelóquios. Mas para não frustrar os leitores que aguardam uma explicação preliminar sobre o sentido do que vão ler, conseguimos de Henrique Lima Vaz autorização para publicar no pórtico desta tradução seu luminoso texto sobre a Significação da Fenomenologia do Espírito (Faz parte de seu artigo sobre "O Senhor e o Escravo: uma parábola da Filosofia Ocidental" publicado na Síntese, n° 21. janeiro/abril 1981). Foi Henrique Vaz que sugeriu à Vozes que nos encarregasse desta tradução, e que nos acompanhou em todos os momentos esclarecendo dúvidas de interpretação. A ele, que consideramos nosso Mestre, cordiais agradecimentos. Nosso colaborador, Prof. Karl-Heinz Efken, ajudou-nos na tradução de passagens difíceis de sua língua materna, revisou todo nosso texto e ainda fez uma versão preliminar da Razão observadora (§§ 231 a 349). Agradecendo sua valiosa colaboração, estendemos nossos agradecimentos ao apoio que nos deu o Prof. Alfredo Morais, que, como Karl-Heinz Efken, é nosso colega no Departamento de Filosofia da Universidade Católica de Pernambuco. <hr> [[Prosseguir->Apresentação]] Você está numa sala. (click-append: "sala")[ sem porta nem janelas](click-append: "sem porta nem janelas")[, apenas as estantes preenchidas por livros e uma mesa ao centro com três livros sobre ela](click-append:"estantes preenchidas por livros")[ em branco](click-append:"três livros sobre ela")[. <br>Você se aproxima da mesa](click-append:"Você se aproxima da mesa")[. Vê o nome dos livros, que se chamam <strong>Fenomenologia do Espírito</strong>, sendo três volumes diferentes. Qual deles você pega pra ler?<br>[[Volume 1]]<br>Volume 2<br>Volume 3](open-url: "nota.html") <!--[[Nota do Tradutor]] [[Apresentação: A significação da Fenomenologia do Espírito por Henrique Vaz->Apresentação]]-->Você abre o livro e lê o [[sumário]].<h1>APRESENTAÇÃO</h1> <h2>A significação da Fenomenologia do Espírito</h2> <h3>Henrique Cláudio de Lima Vaz</h3> A <em>Fenomenologia do Espírito</em> é uma obra, por tantos títulos original e mesmo única dentro da tradição do escrito filosófico, e que assinala em 1807 (o autor contava então 37 anos) a aparição de Hegel no primeiro plano de cena filosófica alemã. Tendo publicado até então apenas artigos ou pequenos escritos mas tendo, por outro lado, amadurecido durante os anos do seu ensinamento na Universidade de lena (1801-1806) as grandes linhas do seu sistema no confronto com os grandes mestres do Idealismo alemão, sobretudo Kant, Fichte e Schelling, Hegel pretende fazer da <em>Fenomenologia</em> o pórtico grandioso desse sistema que se apresenta orgulhosamente como Sistema da Ciência. No entanto, a arquitetura e a escritura desse texto surpreendem. Não é uma meditação no estilo cartesiano, nem uma construção medida e rigorosa como a <em>Crítica da Razão Pura</em>, nem um tratado didático com a <em>Doutrina da Ciência</em> de Fichte. Sendo tudo isto, é sobretudo a descrição de um <em>caminho</em> que pode ser levado a cabo por quem chegou ao seu termo e é capaz de rememorar os passos percorridos; o próprio filósofo na hora e no lugar da escritura do texto filosófico, Hegel no seu tempo histórico e na lena de 1806. Esse caminho é um caminho de experiências e o fio que as une é o próprio discurso dialético que mostra a necessidade de se passar de uma estação a outra, até que o fim se alcance no desvelamento total do <em>sentido</em> do caminho ou na recuperação dos seus passos na articulação de um saber que o funda e justifica. Quem fala de experiência fala de sujeito e significação, de sujeito e objeto. A intenção de Hegel na <em>Fenomenologia</em> é articular com o fio de um discurso científico - ou com a necessidade de uma lógica - as figuras do sujeito ou da consciência que se desenham no horizonte do seu afrontamento com o mundo objetivo. "Ciência da experiência da consciência": esse foi o primeiro título escolhido por Hegel para a sua obra. Na verdade, essas figuras têm uma dupla face. Uma face <em>histórica</em>, porque as experiências aqui recolhidas são experiências de cultura, de uma cultura que se desenvolveu no tempo sob a injunção do pensar-se a si mesma e de justificar-se ante o tribunal da Razão. Uma face <em>dialética</em>, porque a sucessão das figuras da experiência não obedece à ordem cronológica dos eventos mas à necessidade imposta ao discurso de mostrar na sequência das experiências o desdobramento de uma lógica que deve conduzir ao momento fundador da Ciência: ao Saber absoluto como adequação da certeza do sujeito com a verdade do objeto. Não é fácil mostrar como se entrelaçam Histórica e Dialética no discurso da <em>Fenomenologia</em>. Baste-nos dizer aqui que o propósito de Hegel deve ser entendido dentro da resposta original que a <em>Fenomenologia</em> pretende ser à grande aporia transmitida pela <em>Crítica da Razão pura</em> ao Idealismo alemão. Esta aporia se formula como cisão entre a ciência do mundo como <em>fenômeno</em>, obra do Entendimento, e o conhecimento do absoluto ou do incondicionado - da <em>coisa-em-si</em> - que permanece como ideal da Razão. O absoluto só se apresenta para Kant no domínio da Razão prática como postulado de uma liberdade transempírica, fora do alcance de uma ciência do mundo. Com a <em>Fenomenologia do Espírito</em> Hegel pretende situar-se para além dos termos da aporia kantiana, designando-a como momento abstrato de um processo histórico-dialético desencadeado pela própria situação de um sujeito que é fenômeno para si mesmo ou portador de uma ciência que <em>aparece</em> a si mesma no próprio ato em que faz face ao aparecimento de um objeto no horizonte do seu saber. Em outras palavras, Hegel intenta mostrar que a fundamentação absoluta do saber é resultado de uma gênese ou de uma história cujas vicissitudes são assinaladas, no plano da aparição ou do <em>fenómeno</em> ao qual tem acesso o olhar do Filósofo (o <em>para-nós</em> na terminologia hegeliana) pelas oposições sucessivas e dialeticamente articuladas entre a certeza do sujeito e a verdade do objeto. Anunciando a publicação do seu livro, Hegel diz: "Este volume expõe o devir do saber (<em>das werdende Wissen</em>). A <em>Fenomenologia do Espírito</em> deve substituir-se às explicações psicológicas ou às discussões mais abstraías sobre a fundamentação do saber. O sujeito e o fenômeno kantianos são rigorosamente anistóricos. Desde o ponto de vista de Hegel são, portanto, abstratos. Na <em>Fenomenologia</em>, Hegel quer mostrar que essa abstração, na qual o mundo é o mundo sem história da mecânica newtoniana e é acolhido pelo sujeito ao qual "aparece" nas formas acabadas das categorias do Entendimento, é apenas momento de um processo ou de uma gênese que começa com a "aparição" do sujeito a si mesmo no simples "aqui" e "agora" da <em>certeza sensível</em> (primeiro capítulo da Fenomenologia), aparição que mostra a dissolução da verdade do objeto na certeza com que o sujeito procura fixá-la. A partir daí, o movimento dialético da <em>Fenomenologia</em> prossegue como aprofundamento dessa situação histórico-dialética de um sujeito que é fenómeno para si mesmo no próprio ato em que constrói o saber de um objeto que aparece no horizonte das suas experiências. Assim, Hegel transfere para o próprio coração do sujeito - para o seu saber - a condição de <em>fenómeno</em> que Kant cingira à esfera do objeto. Essa é a originalidade da <em>Fenomenologia</em> e é nessa perspectiva que ela pode ser apresentada como processo de "formação" (cultura ou <em>Bildung</em>) do sujeito para a ciência. E entende-se que a descrição desse processo deva referir-se necessariamente às experiências significativas daquela cultura que, segundo Hegel, fez da ciência ou da filosofia a <em>forma rectrix</em> ou a <em>enteléquia</em> da sua história: a cultura do Ocidente. Dois fios nos conduzem através do longo e difícil itinerário da <em>Fenomenologia</em>. Um deles é a linha das <em>figuras</em> que traça o processo de formação do sujeito para o saber, unindo dialeticamente as experiências da consciência que encontram expressões exemplares na história da cultura ocidental. As figuras delineiam portanto, no desenvolvimento da <em>Fenomenologia</em>, o relevo de um tempo histórico que se ordena segundo uma sucessão de paradigmas e não segundo a cronologia empírica dos eventos. Mas vimos como essa referência à história é essencial para Hegel porque, segundo ele, a <em>Fenomenologia</em> somente poderia ter sido escrita no tempo histórico que era o seu e que assistira à revolução kantiana na filosofia e à revolução francesa na política. O segundo fio une entre si os <em>momentos</em> dessa imensa demonstração ou <em>exposição</em> da necessidade imposta à consciência de percorrer a série das suas figuras - ou das experiências da sua "formação" - até atingir a altitude do Saber absoluto. Vale dizer que a ordem dos momentos descreve propriamente o movimento dialético ou a lógica imanente da <em>Fenomenologia</em> e faz com que a aparição das figuras não se reduza a uma rapsódia sem nexo mas se submeta ao rigor de um desenvolvimento necessário. <em>Figuras e momentos</em> tecem a trama desse original discurso hegeliano, que pode ser considerado a expressão da consciência histórica do filósofo Hegel no momento em que a busca de uma fundamentação absoluta para o discurso filosófico como auto-reconhecimento da Razão instauradora de um mundo histórico - o mundo do Ocidente - pode ser empreendida não como a delimitação das condições abstraías de possibilidade, tal como tentara Kant, mas como a rememoração e recuperação de um caminho de cultura que desembocava nas terras do mundo pós-revolucionário onde o sol do Saber absoluto - o imperativo teórico e prático de igualar o racional e o real - levantava-se implacável no horizonte. A <em>Fenomenologia</em> apresenta, pois, três significações fundamentais. Uma significação propriamente <em>filosófica</em> definida pela pergunta que situa Hegel em face de Kant: o que significa para a consciência experimentar-se a si mesma através de sucessivas formas de saber que são assumidas e julgadas por essa forma suprema que chamamos ciência ou filosofia? uma significação <em>cultural</em> definida pela interrogação que habita e impele o "espírito do tempo" na hora da reflexão hegeliana: o que significa, para o homem ocidental moderno, experimentar o seu destino como tarefa de decifração do enigma de uma história que se empenha na luta pelo Sentido através da aparente sem-razão dos conflitos, ou que vê florescer "a rosa da Razão na cruz do presente?". Finalmente, uma significação <em>histórica</em>, definida pela questão que assinala a originalidade do propósito hegeliano: o que significa para a consciência a necessidade de percorrer a história da formação do seu mundo de cultura como caminho que designa os momentos do seu próprio formar-se para a Ciência? Tais serão as significações que irão entrecruzar-se na dialética do Senhor e do Escravo conferindo-lhe o caráter paradigmático que aqui queremos ressaltar. O ponto de partida da <em>Fenomenologia</em> é dado pela forma mais elementar que pode assumir o problema da inadequação da certeza do sujeito cognoscente e da verdade do objeto conhecido. Esse problema surge da própria <em>situação</em> do sujeito cognoscente enquanto <em>sujeito consciente</em>. Ou seja, surge do fato de que a <em>certeza</em> do sujeito de possuir a verdade do <em>objeto</em> é, por sua vez, objeto de uma experiência na qual o sujeito aparece a si mesmo como instaurador e portador da verdade do objeto. O lugar da verdade do objeto passa a ser o discurso do sujeito que é também o lugar do automanifestar-se ou do auto-reconhecer-se - da <em>experiência</em>, em suma - do próprio sujeito. Não bastará comparar a <em>certeza</em> "subjetiva" (em sentido vulgar) e a verdade "objetiva" (igualmente em sentido vulgar), mas será necessário submeter a verdade do objeto à verdade originária do sujeito ou à lógica imanente do seu discurso. Será necessário, em outras palavras, conferir-lhe a objetividade superior do saber que é ciência. Essa é a estrutura dialética fundamental que irá desdobrar-se em formas cada vez mais amplas e complexas ao longo da <em>Fenomenologia</em>, à medida em que a exposição que o sujeito faz a si mesmo do seu caminho para a ciência incorpora - na rememoração <em>histórica</em> e na necessidade <em>dialética</em> - novas experiências. Trata-se, afinal, como diz Hegel na <em>Introdução</em>, de aplicar ao sujeito que se experimenta no ato de saber alguma coisa a sua própria medida (pois onde poderá buscar, senão em si mesmo, uma medida que seja norma constitutiva do seu saber?) e com ela medir, nas formas sucessivas de saber, a distância que separa a certeza da verdade, até que essa distância seja suprimida no saber em que a verdade da medida revela a sua plena adquação à certeza do sujeito e à verdade do objeto: no Saber absoluto. Os três primeiros capítulos da Fenomenologia, que constituem a sua primeira parte (a), desenvolvem portanto esse esquema dialético a partir da sua forma mais elementar ou da situação originária do sujeito que conhece alguma coisa e se experimenta na certeza de possuir a verdade do objeto conhecido ou, simplesmente, toma consciência do seu saber. Tal situação é definida pela presença do sujeito no aqui e no agora do mundo exterior e o saber, nesse primeiro momento, não é mais do que a simples indicação do objeto nesse aqui e nesse agora. Esse primeiro saber é denominado por Hegel "certeza sensível". E o domínio onde se move a consciência ingênua, quase animal, que pensa possuir a verdade do objeto na certeza de indicá-lo na sua aparição no aqui e no agora do espaço e do tempo do mundo. A dissolução da "certeza sensível", ou o evanescer-se do "isto" pretensamente concreto da experiência imediata do mundo na "percepção" da "coisa" abstraía (cap. 2), ou seja, do objeto definido pela atribuição de muitas propriedades abstratamente universais, mostra que a ciência da experiência da consciência ou a dialética da Fenomenologia se inclina na direção que irá levar à plena explicitação da consciência ou da "verdade da certeza de si mesmo" como instituidora da verdade do mundo. Com efeito, o 3o capítulo, ao qual Hegel dá o título "Força e Entendimento, a aparição e o mundo supra-sensível" e que é, sem dúvida, um dos mais difíceis da obra retoma o problema kantiano do Entendimento (Verstand) e da constituição do mundo como natureza ou reino das leis, modelo ideal do sensível. Aqui se dá a "inversão" do mundo com relação à "coisa" da percepção e ao "isto" da certeza sensível: o mundo que Hegel denomina (numa reminiscência de Platão) o mundo "supra-sensível" é o calmo reino das leis que regem o jogo recíproco das forças (como na terceira lei newtoniana do movimento) mas a sua verdade se revela, finalmente, na imanência perfeita do movimento em si mesmo, ou seja, na vida. A vida é a verdade da natureza, e Hegel admite uma vinculação muito mais profunda do que Kant estaria disposto a aceitar entre a estrutura mecanicista do mundo que é objeto do Entendimento da Crítica da Razão Pura, e a sua estrutura finalista, objeto do juízo teleológico na Crítica da faculdade de julgar. No entanto, o que Hegel pretende mostrar aqui é que, na experiência do saber de um objeto que lhe é exterior, a consciência se suprime como simples consciência de um objeto, passa para a consciência-de-si como para a sua verdade mais profunda: a verdade da certeza de si mesmo. O resultado da dialétíca do jogo recíproco das forças que faz surgir o conceito de infinidade como distinção no seio do que é idêntico - ou como emergência da vida - desenha, desta sorte, uma nova figura da consciência. Hegel a descreve assim: "A consciência de um outro, de um objeto em geral é ela própria, necessariamente, consciência-de-si, ser-refletido em si, consciência de si mesmo no seu ser outro. O progresso necessário das figuras da consciência até aqui exprime exatamente isto, ou seja, que não somente a consciência da coisa é possível unicamente para a consciência-de-si, mas ainda que somente esta é a verdade daquela". Se a primeira parte da Fenomenologia leva o título geral de "Consciência" é que ela designa o movimento dialético no qual o saber do mundo passa no saber de si mesmo como na sua verdade. Hegel, em suma, traduz em necessidade dialética a necessidade analítica com que Kant unifica as categorias do Entendimento na unidade transcendental da apercepção no Eu penso. Nas figuras da consciência a verdade, enquanto distinta da certeza, é, para a consciência, um outro, uma vez que é verdade de um mundo exterior que ainda não passou para a verdade originária e fundadora da própria consciência. "Com a consciência-de-si, diz Hegel, entramos pois no reino nativo da verdade". Trata-se, então, de acompanhar o surgimento das figuras que irão marcar o itinerário dialético da consciência-de-si. Mas a originalidade do procedimento hegeliano e a natureza própria do caminho fenomenológico tornam-se patentes nos traços que irão compor a primeira figura da consciência-de-si, e na direção do seu movimento dialético. Com efeito, a primeira figura da consciência-de-si não é a identidade vazia do Eu penso ou a "imóvel tautologia" do Eu=Eu que, de Descartes a Fichte, a filosofia moderna colocara no centro do novo universo copernicano da razão. Na verdade, a consciênciade-si é reflexão a partir do ser do mundo sensível e do mundo da percepção e é, essencialmente, um retomo a partir do ser-outro. Esse ser-outro (o mundo sensível) é conservado no movimento dialético constitutivo da consciência-de-si como uma segunda diferença que se insere na primeira diferença com a qual a consciênciade-si se distingue de si mesma na identidade reflexiva do Eu. Assim, o mundo sensível se desdobra no espaço dessa identidade mas não mais como o objeto que faz face à consciência, e sim como o ser que, para a consciência-de-si, é marcado com o "caráter do negativo" e cujo em-si deve ser suprimido para que se- constitua a identidade concreta da consciência consigo mesma. Para a consciência que retorna a si pela supressão do seu objeto ou pela evanescência do ser do objeto na certeza da verdade que é agora a verdade da própria consciência, o objeto assume as características da vida e a figura da consciência-de-si é o desejo. Para caracterizar o objeto da consciência-de-si que perdeu a subsistência imediata das coisas que compõem o mundo exterior, Hegel recorre ao conceito de vida tal como se constituirá na tradição de pensamento que vai de Espinoza a Schelling passando pelo Romantismo. A vida é aqui o puro fluir ou a infinidade que suprime todas as diferenças e, no entanto, é subsistência que descansa nessa absoluta inquietação. Nesse sentido a vida aparece como objeto da consciência-de-si - ou como seu oposto na medida em que é para ela como seu primeiro esboço na exterioridade do mundo. A verdade do mundo passou para a consciência-de-si e ela caminha para comprovar essa sua verdade fazendo no confronto com a vida a experiência da sua unidade. Eis por que a consciência-de-si assume a figura do desejo que se cumpre na sua própria satisfação, ou que é atividade essencialmente negadora da independência do seu objeto. Mas é preciso não obscurecer a dialética do desejo com interpretações alheias ao propósito hegeliano. O caminho descrito pela Fenomenologia acompanha os passos da formação do indivíduo para a ciência, ou, se quisermos, do homem ocidental para a Filosofia. A essa altura do itinerário o resultado essencial surge ao termo do movimento dialético que mostra a consciência-de-si como verdade da consciência do mundo exterior. Trata-se, pois, de explicitar num novo ciclo de figuras o conteúdo desse resultado e descrever a experiência que a consciência-de-si faz de si mesma: da sua verdade. O desejo surge como primeira figura que a consciência-de-si assume na sua certeza de ser a verdade do mundo. Com efeito, no desejo o em-si do objeto é negado pela satisfação e é esse movimento de negação que opera para a consciência a sua conversão a si mesma e traça a primeira figura da sua transcendência sobre o objeto. Para Hegel, o primeiro passo que a consciência dá em direção à sua verdade como consciência-de-si manifesta-se no comportamento do desejo, na negação da independência do objeto em face da pulsão do desejo em busca da sua satisfação. Essa experiência adquire uma significação decisiva como experiência que inaugura o ciclo dialético das experiências que a consciência-de-si deve empreender para assegurar-se da sua verdade. Mas, trata-se de uma experiência cujo caráter a um tempo essencial e fugaz tem sido ressaltado pelos comentadores do texto hegeliano. Na verdade, apenas se pode dizer que se trata aqui de uma experiência no sentido pleno uma vez que, nela, o objeto se revela inadequado para assegurar essa certeza que a consciênciade-si deve ter de si mesma, ou a transcendência efetiva do sujeito consciente sobre o mundo. De um lado, o egoísmo radical do desejo descreve a figura da consciência-de-si na sua identidade vazia e, de outro, o objeto consumido na satisfação mostra-se incapaz de exercer a mediação exigida para que o saber de si mesmo se constitua como resultado dialético e, portanto, fundamento do saber do objeto. O infinito do desejo é, nos termos de Hegel, um "mau infinito", no qual o objeto ressurge sempre na sua independência para que uma nova satisfação tenha lugar (21). Para que a consciência-de-si alcance a sua identidade concreta será necessário que ela se encontre a si mesma no seu objeto. Em outras palavras, será necessário que a verdade do mundo das coisas e da vida animal passe para a verdade do mundo humano, ou a verdade da natureza passe para a verdade da história. Nos termos de Hegel equivale dizer que "a consciência-de-si alcança a sua satisfação somente numa outra consciência-de-si".